É hipócrita viver. É o jogo perverso da sobrevivência. Nascemos, acordam-nos para mamar, empurram-nos para a autonomia dos primeiros passos, mandam-nos brincar e, se fazemos seis anos até Dezembro, vamos para os bancos da escola com cinco. Se falhamos no dois mais dois, junta-se a família com o psicólogo; enchem-nos de comida para ficarmos altos e forçam-nos as costas com os livros na mochila; levam-nos às festas dos amigos e à noite contam-nos histórias para compensar o excesso de horas de trabalho. Aos catorze, ainda a descobrir o corpo e a espremer borbulhas, temos de decidir o que "queremos ser". Se não entramos na universidade ameaçam-nos ficar a carimbar para o Estado, se conseguimos, passam-nos a mão pela cabeça e dão-nos uns trocos. Se acordamos a meio da noite a perguntar se foi Darwin que escreveu A Cidade e as Serras, levam-nos a lanchar com um remorso confuso. Se temos um esgotamento, dizem-nos que não é preciso estudar tanto, mas como já é tarde para pedagogias e a urgência já passou a ser nossa, lá vamos tirando o curso entre ansiolíticos e cafés. Os namoros ficam a meio, porque há sempre um que reclama pelo "tempo de qualidade", o curso acaba e o cabelo vai caindo. A queima das fitas, os debates sobre o consumo do álcool e a falta de emprego. Os descontos para a reforma, o empréstimo para a casa, o casamento, a espera pelos filhos, as horas fora do trabalho a diminuir e a conta bancária a aumentar a mentira de "Qualidade de Vida". A mulher a reclamar atenção e o marido a acusá-la de ingrata. Nos fins-de-semana está-se com os amigos, nas férias passeia-se. Os Natais sempre tristes pelas reportagens de pobres que não têm que comer. Vem a idade: a mulher não deve falar durante a "bola" e ele já sabe que vão lá os filhos à sexta. A desgraça da "doença prolongada" do marido, as idas ao hospital ou à clínica, a incompreensão das explicações do médico, as reformas e a viúva que chora o defunto. Já lhe custa correr na passagem de peões defronte da sua casa onde aceleram jovens adultos que correm para o emprego. Morre a "velhinha". Embrulham-na num pano, pois está sem jeito de ver-se, choram-na, chega a ambulência sem a pressa que merecem os vivos, de onde sai o maqueiro que se demora na sua função porque está ao telefone com a mulher que o aborrece. "É favor afastar!".
Para quê ?